domingo, 3 de abril de 2011

Via-Sacra, Cristo hoje de novo crucificado



É tradição da Igreja que, ao longo da Quaresma, se reze a Via-sacra, e de modo particular na Sexta-Feira Santa.

São inumeráveis os textos à disposição para esta prática de piedade, embora sugiro as citações de uma Via-sacra bíblica. Portanto, limito-me aqui a oferecer como complemento, uma oração e um gesto simbólico.

Objectivo desta proposta:
Compreender que o relato da Paixão e Morte do Senhor ainda não terminou e que as “estações” continuam infinitamente em cada ser humano que sofre pelos mais variados motivos.

Desenvolvimento
  • É conveniente que os textos específicos da Via-sacra sejam lidos por uma mesma pessoa (guia).
  • Diferentes pessoas, conforme se trata de homens ou mulheres, jovens ou idosos, etc., podem ler as orações que sugiro.
  • Os mesmos leitores das orações (ou membros da comunidade) depositam aos pés de uma cruz proclamada, ou em cada estação, um elemento simbólico representando os novos ‘cravos’ da Via-sacra contemporânea…



1ª Estação


A Última Ceia
Jo 13, 1-4. 12-15

Oração de um(a) professor(a) de uma zona rural

Elemento simbólico:
- Uma bata branca



“Senhor Jesus, tenho 35 anos e sou professor(a) rural.

Na única sala da minha escola não só devo dar aulas de diferentes classes aos meus variados alunos como, em cada manhã, devo dar-lhes de comer para que não durmam sobre as carteiras.

Eles querem aprender, mas não são bem alimentados e, com o estômago vazio a inteligência não consegue obedecer…

São filhos de camponeses e comem uma vez por dia. Para chegar à escola percorrem quilómetros nas suas sapatilhas rotas e as batas que um dia foram brancas, denunciam o desejo obstinado de querer aprender a ler e escrever…

Se o Reino dos Céus é dos que se fazem como eles, porque não somos capazes de fazer com que não lhes falte o necessário, de construir um futuro melhor para eles?”



2ª Estação

Jesus no Getsémani
Mt 26, 36-46

Oração de um doente

Elemento simbólico:
- Uma bandeja repleta de frascos com comprimidos de diferentes formas e cores.



“Jesus, estou doente com Sida.
Só a minha mãe e um amigo me visitam aos sábados.

O hospital tem cinco mil janelas que não dão para lado nenhum e três mil camas de dor…
A minha cama é a 541 do 4º piso, mas eu sou algo mais do que um número.

Jesus, estou sozinho! A minha Sida e eu e o número da minha cama.
O hospital é enorme…
Se alguém me vem visitar, é difícil que me encontre…

Porque sou um número para os outros, se tu me criaste pessoa?

Quando o número 541 morrer, haverá um novo número no meu lugar.
As cinco mil janelas foram feitas para nós, mas não levam a lado nenhum.
A Sida e eu somos uma única coisa. Eu sou uma pessoa”.



3ª Estação

Julgamento do Sinédrio e de Pilatos
Mc 14, 53-65. 15, 1-15

Oração de um toxicodependente

Elemento simbólico:
- Uma seringa


“Senhor, tenho 18 anos e sinto-me só. Com os meus pais as coisas vão muito mal. Os meus estudos não andam, mas também não quero que andem melhor. Cada vez me custa mais estudar…

Quando me drogo. Consigo escapar desta sensação de vazio que é a minha vida, do desamor dos meus pais, do absurdo de tudo.

Mas quando me passa o efeito, volto a ter de enfrentar estes verdugos. Para os outros é fácil julgar-me, mas não sabem que não tenho forças nem motivações suficientes para sair deste inferno…

Eu sei que me meti numa engrenagem de que não posso sair…
Sei onde está a luz, mas já não tenho forças para iniciar o caminho e a alcançar…”



4ª Estação

A Flagelação e a Coroação de Espinhos
Jo 19, 1-3

Oração de uma mãe

Elemento simbólico:
- Uma fotografia emoldurada ou uma imagem de uma revista de uma mãe com filhos


“Senhor, sou uma mãe que não se pode encontrar com os seus filhos. Às vezes pergunto para que é que tive filhos…

Não me divorcio porque amo o meu marido, ainda que às vezes duvide se ele me ama como antes me amava…

À medida que vão chegando os filhos, renovam-se as esperanças de uma mãe, mas quando ficam crescidos começa-se a pensar se vale a pena trazê-los ao mundo. Cada vez me apreciam menos e cada vez menos posso abrir a boca na sua presença. Às vezes creio que se eu faltasse, eles só notariam pela comida e pela limpeza da roupa.

Jesus, a alegria está a desaparecer em mim, e farto-me de todos e de tudo.

No caminho da cruz dizem que Te encontraste com a tua Mãe. Eu, Jesus, sou uma mãe que não se encontra com os seus filhos…”



5ª Estação

Jesus com a Cruz às Costas
Jo 19, 14-17

Oração de um imigrante

Elemento simbólico:
- Uma peça de roupa (ou outro objecto representativo) de um imigrante africano ou do Leste europeu – mala ou bolsa


“Senhor, deixei o meu país há meses. O meu dinheiro mal dava para a viagem e para começar a trabalhar com algo no bolso, mas durante a viagem roubaram-me.

Nos primeiros dias ajudaram-me algumas pessoas, mas não posso continuar assim. Não é tão fácil como pensava: não há trabalho e o pouco que há é mal pago.

Deixei a minha esposa e os meus filhos com a esperança de lhes mandar alguma coisa para que fiquem melhor, mas nem sequer posso comunicar com eles. Tenho muitas saudades deles e sinto-me só, tremendamente só num país que não é o que eu pensava e numa situação tão triste que, pouco a pouco, vai matando as minhas pobres esperanças.”



6ª Estação

Jesus Cai Sob o Peso da Cruz
Mt 11, 28-30

Oração de uma adolescente grávida

Elemento simbólico:
- Fraldas, chupeta, biberão, etc.


“Senhor, tenho apenas 15 anos e já estou à espera de um filho.
Vivo nos subúrbios e não tenho trabalho.
Sou a mais velha dos meus oito irmãos e os meus pais estão fora durante todo o dia, fazendo todo o tipo de trabalhos para nos dar de comer. Quando souberam que eu estava à espera de bebé, reprovaram-me por não ter tido cuidado.

Quem me explicou alguma coisa? Quem me disse como evitar?

Alguns disseram que era apenas mais uma boca para alimentar e outros que eu tinha saído à minha mãe…
A minha tia sugeriu-me que não o tivesse, que conhecia uma senhora com um certo jeito…, mas tenho muito medo…

Todos me dizem coisas, quando já é tarde e não sei o que é que hei-de fazer.

Estou sozinha, Senhor, no meio da tempestade.
Sozinha, com o meu filho não desejado…”



7ª Estação

Simão de Cirene ajuda Jesus
Mc 15, 20-22

Oração de um preso

Elemento simbólico:
- Correntes, algemas


“Senhor, já cá estou há muito tempo e ainda me falta mais tempo para sair. Todos os dias são iguais e cada vez me sinto mais angustiado por me terem roubado a vida.

À medida que o tempo passa, vou-me dando conta do erro que cometi e estou arrependido. Mas aqui o ambiente é tão cruel como aí fora e nada nem ninguém nos ajuda a sermos melhores. Isto é viver? Vale a pena continuar assim?

Às vezes sinto que a minha cela é uma espécie de túmulo onde vou vivendo a minha agonia. Porque, ainda que um dia possa sair daqui, quem me dará um trabalho?
Além disso, já não serei o mesmo. Serei apenas ‘o que esteve na cadeia’…”



8ª Estação

As Mulheres de Jerusalém Choram por Jesus
Lc 23, 27-31

Oração de uma mulher descriminada

Elemento simbólico:
- Uma gravata


“Senhor, fui tão influenciada que não posso ser eu mesma.
A televisão diz como me tenho de vestir, o que tenho de comer, como me devo pentear…
Antes eram os meus pais que decidiam por mim. Agora são os meios de comunicação, as modas, geralmente dirigidos por homens.

Na empresa em que trabalho sei que nunca poderei chegar a determinados cargos, apesar de estar preparada para eles e, em relação ao dos meus companheiros homens, o meu ordenado será sempre inferior. Mas eu Jesus, sou um ser humano e não uma coisa.

O que devo fazer para não ser descriminada, para ser valorizada de forma concreta, para recordar a todos que também eu fui criada à tua imagem e semelhança?”



9ª Estação

A Crucificação de Jesus
Lc 23, 33-38

Oração de um desempregado

Elemento simbólico:
- A secção dos classificados de um jornal


“Senhor não tenho trabalho. Só tenho as minhas duas mãos. Não tenho educação nem cultura. Não tenho mais do que as minhas duas mãos, muitos filhos e a minha esposa.

Os biscates que fazemos aqui e ali, não dão para nada.
O que havemos de comer?

Os meus filhos não têm culpa de que haja crise no nosso país e eu não sou culpado de não ter tido meios para estudar.

As famosas “leis do mercado” de que somos vitimas abrem cada vez mais as feridas da nossa miséria quotidiana.
Sou pai de família e, quando os meus filhos me pedem pão, não lhes posso dar uma pedra. Não é verdade Jesus?”



10º Estação

O Bom Ladrão
Lc 23, 39-43

Oração de alguém mesmo pobre

Elemento simbólico:
- Um prato vazio


“Não tenho nada Senhor. Às vezes penso que nem sequer tenho vida, mas devo tê-la, porque me doem as minhas pernas… devo estar vivo.

Eu sou uma partícula dessas duas terças partes dos homens que passam fome.

Eles, os que têm tudo e que não se preocupem, que não temam; nós não lhes podemos fazer nada. Nós só temos fome.
Das suas poltronas não podem ver a nossa fome porque os seus televisores apresentam-nos a eles como um produto exótico e inofensivo, como vitimas das injustiças de qualquer governo.

E assim, procurando a quem deitar culpas, justificam a sua incapacidade de partilhar. Os meus filhos morrem de fome, enquanto os deles comem com gosto.

Só sei de uma verdade: os seus filhos são os únicos que engordam…”



11ª Estação

Maria e o Discípulo ao Pé da Cruz
Jo 19, 25-27

Oração de um torturado

Elemento simbólico:
- Uma venda e uma corda


“Senhor, espancaram-me até aos ossos. Rasgaram-me o estômago. Deformaram-me a cara. Pontapearam-me mas partes mais sensíveis. Bateram-me nas plantas dos pés até eu desmaiar. Perdi o cabelo e alguns dentes. O branco dos meus olhos ficou amarelo. A minha saúde está definitivamente perdida. Não posso nem sequer estar parado. Parece impossível tanta dor…

A tortura infligida pelos meus verdugos aproxima-se da tua agonia na cruz.

Isso dá-me forças para suportar cada golpe, cada prova.
E entretanto tento que não se apaguem as minhas esperanças.

Permaneço fiel aos meus ideais até que a morte me encontre, com um sorriso nos lábios…”



12ª Estação

A Morte de Jesus
Mt 15, 33-39

Oração de um idoso

Elemento simbólico:
- Chapéu, pantufas e uma bengala


“Senhor, já nem me lembro quantos anos tenho e também não posso recordar-me do nome de todos os meus netos… será porque não me visitam há muito tempo…

No lar de idosos passamos as horas olhando-nos uns aos outros, perguntando-nos quem será o próximo a encontrar a morte.

Estamos todos juntos, numa mesma sala, mas estamos sós, porque os seres ‘queridos’ já não nos querem.

Ás vezes pergunto: Por que não me levas? Sinto-me culpável por viver e ser um estorvo para a minha família, mais uma despesa, uma recordação indesejável daquilo que eles virão a ser um dia…”



13ª Estação

A Sepultura de Jesus
Jo 19, 38-42

Oração pessoal

Elemento simbólico:
- Cada um elege um elemento que simbolize a ‘sua’ cruz


Nesta estação o guia convida à oração pessoal silenciosa, em que cada um interiormente possa apresentar a Deus a sua própria cruz, a sua própria dor, apresentando – se assim desejar - o elemento simbólico escolhido.



14ª Estação

A Profecia de Simeão a Maria
Lc 2, 33-35a

Oração a Maria

Elemento simbólico:
- Uma imagem da Virgem posta aos pés da cruz


“Sou uma mãe, de uma pequena povoação.
Vim a Jerusalém porque sabia que havia perigo.

Não queria senão estar ao lado do meu Filho, se acontecesse alguma coisa.
Já imaginava que não podia fazer nada, mas ao menos estaria junto d’Ele.
E estive junto do meu Filho no momento de maior dor.

Quando tudo passou e Ele entregou o seu espírito, tive de me sentar.

Tinha estado de pé, junto à sua cruz; queria que ele me visse perto.

Não podia fazer mais, mas também não podia fazer menos.

Quando O desceram, estava húmido, branco e frio.

Meu Jesus, meu Filho, a alegria da minha casa, estava sobre os meus joelhos sem vida.

Ninguém pode conhecer a profundidade da minha dor…

Jesus, cada vez que penso na dor de tantos homens doentes, presos, oprimidos, torturados, desaparecidos… lembro-me desse momento e te peço para que o meu ventre fecundo de Mãe não se esqueça da dor dos meus filhos.

Meus filhos, acreditai em mim, ainda que sofrais, Eu estou junto da vossa dor, de pé, convosco”.


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