terça-feira, 26 de julho de 2011

Tu que cuidas de mim.



(Texto encontrado numa pequena caixa de uma falecida num Lar de Terceira Idade e dirigido à funcionaria que mais tratou dela).


Tu que cuidas de mim, que vês?
Quando olhas para mim que pensas?

Sou uma velhota rabugenta e já meia demente que se baba quando come e que nunca responde aos teus contínuos “vá, tente” parecendo que não presto atenção ao que dizes.
Sou uma velhota que perde as meias e os sapatos, que parece dócil à tua maneira de lhe dares banho e lhe ministrares as refeições…
É isto que pensas?
É isto que vês?

Então abre os olhos que eu, aqui sentada e tranquila, agarrada à minha bengala, vou dizer-te quem sou.


Eu sou a última de dez irmãos.
Tive um pai e uma mãe e gostávamos muito todos uns dos outros.
Fui donzela de dezasseis anos com asas nos pés, sonhando com um noivo que em breve encontraria.
Casei aos vinte e o meu coração ainda rejubila de alegria com a lembrança desse belo dia.
Tive um filho aos vinte e cinco.
Vi-o crescer depressa demais mas a quem ainda me prendem fortes laços de afeição.
Quando cheguei aos quarenta e cinco, ele saiu do ninho do lar para construir o seu próprio ninho…
Mas eu fiquei com o meu marido que velou por mim.
Aos cinquenta anos, de novo brincam bebés a meu lado.
São os meus netos e eu revejo-me nessas crianças…

Mas eis que chegam os dias negros: o meu amado morreu.
Olho para o futuro tremendo de medo pois o meu filho está muito ocupado a criar os seus.
E eu penso nos anos passados e no amor que conheci.
Penso: já sou velha e a natureza é muito cruel pois diverte-se a passar a velhice por tola.
O meu corpo definha-se, a beleza e a força abandonam-me.
E há agora aqui uma pedra onde havia um coração.
Mas nesta velha carcaça há uma rapariguinha que sonhou muito e muito amou.
Lembro-me das alegrias, lembro-me das tristezas e, de novo, sinto a minha vida.
E de novo amo.
Repenso os anos curtos que passaram tão depressa e aceito esta realidade implacável de que tudo neste mundo é passageiro.

Então, tu que cuidas de mim, abre bem os olhos para esta velha rabugenta e meia tola e descobre não o que te parece ver mas aquilo que eu sou realmente:
Uma história… que tu amanhã também podes ser…

Olha bem para mim e ver-me-ás melhor…


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